Brasil já registrou 59 mil casamentos entre pessoas do mesmo gênero; Norte tem os três estados com piores índices no país
Thonny Hawany, de 58 anos, e Rafael Costa, de 32, se conheceram na rede social Orkut, em 2010. O servidor federal e professor Thonny é baiano, mas já morava em Rondônia, Estado onde o microempresário Rafael nasceu. Após o primeiro contato online, eles começaram um namoro virtual. O encontro presencial ocorreu em uma festa LGBTQIA+, na cidade de Ji-Paraná, também em Rondônia.
A partir daí, eles se aproximaram e conversaram sobre interesses em comum, incluindo o desejo de ter filhos. A dupla voltou a se encontrar alguns dias depois em Cacoal, cidade onde Thonny morava, e permanece junta até hoje, 14 anos depois.
“Sabíamos desde o começo que havia algo especial no que sentíamos um pelo outro”, afirma Thonny.
Em 2012, eles se tornaram o primeiro dos 237 casais homoafetivos a oficializar uma união em Rondônia, um dos estados com a taxa de casamentos entre pessoas do mesmo gênero mais baixa no país– apenas 0,20% do total de celebrações entre 2013 e 2021, de acordo com o Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), gerido pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC).
O índice de Rondônia é o mesmo do Acre (com total de 87 casamentos homoafetivos no período) e do Tocantins (118 uniões), ambos no Norte. A região inteira registrou 2.120 uniões de pessoas do mesmo gênero entre no intervalo de tempo analisado. O Estado com o melhor índice no Brasil é Santa Catarina, onde os casamentos homoafetivos representam 1,10% do total registrado entre 2013 e 2021.
No mesmo período analisado, o Brasil registrou 59.620 uniões entre pessoas do mesmo gênero, o que corresponde a 0,6% do total de casamentos no país.
Nossa primeira dificuldade foi casar. Entramos na justiça e, com poucos dias, recebemos autorização para casar. Fizemos um investimento para que o nosso casamento, como o 1º do estado, ficasse na história. Causamos! Foi uma noite memorável, algo de estrelas ” – Thonny
Segundo ele, a repercussão da cerimônia ultrapassou os limites da cidade.
“Havia os favoráveis e os contrários, estes de maioria evangélica. Nos dias que se seguiram, a imprensa e as redes sociais não falavam em outra coisa. (…) Não foi fácil, mas enfrentamos tudo com resignação e paciência. A nossa esperança era que o nosso amor nos ajudasse a vencer as barreiras que nos foram impostas. Até um emprego de mais de 15 anos eu perdi. Sei que foi por homofobia, mas não entrei na Justiça, porque não havia prova. Resolvi guardar isso para mim e trabalhar para superar e seguir”, relata Thonny.
Para ele, a celebração do amor do casal foi uma vitória para a comunidade LGBTQIA+ de Rondônia e de toda a região Norte do Brasil: Thonny afirma ter mais amigos assumidos desde então e também os vê andarem de mãos dadas nas ruas com mais frequência. Ainda assim, a realidade para pessoas LGBTQIA+ no Norte do país não é fácil, de acordo com o servidor federal, que cita o fundamentalismo religioso de grupos de evangélicos e católicos como “o maior de todos os entraves para o crescimento das uniões”.
“Também houve um apagamento da militância LGBTQIA+ no estado, com grandes grupos que findaram suas ações e deixaram a população meio que à deriva. Penso que esse também seja um fator que contribui para o apagamento dos interesses por direitos e deveres legalizados”.
Opina o servidor público, que também lamenta a falta de investimento em políticas públicas.
“A administração pautada por princípios da extrema-direita levou ao não investimento em políticas públicas para nossa população. Conheço de perto e sei que Rondônia possui muitos casais de gays, de lésbicas e de outros LGBTQIA+ que poderiam ser mais ativos e não o são pelo medo de serem taxados e discriminados”, finaliza.
Presidente da Organização da Livre Identidade e Orientação Sexual do Pará, Marcos Melo avalia a situação descrita por Thonny como sendo comum em toda região Norte.
“Quando a gente olha para o Norte, é uma região que tem dificuldade de acesso em diversas coisas, é muito interiorizada. Ela tem sim as suas capitais e regiões metropolitanas, mas tem muitas regiões de interior, onde a informação chega de maneira ainda mais escassa. Você tem uma população que ainda reproduz esse discurso conservador e impede o acesso aos direitos. Por isso, temos uma realidade onde pessoas vivem relações de 30, 40 anos, mas nunca enxergam que há o direito delas em poder casar, poder oficializar”, explica Marcos.
Ainda que, desde 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheça a união entre casais do mesmo gênero como entidade familiar, tentativas de proibir estas cerimônias são recorrentes. A mais recente, o projeto de lei 580/07, do deputado Pastor Eurico (PL-PE), foi aprovada na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, em outubro do ano passado. A proposta ainda será analisada em duas outras comissões e, se aprovada, seguirá para o Senado.
Marcos acredita ser importante, sim, garantir juridicamente algumas conquistas. Mas ele pede atenção de movimentos sociais e da sociedade civil organizada para monitorar o cumprimento das leis existentes.
“Lá na ponta, ainda tem cartório negando. Ainda tem juiz se recusando a realizar a cerimônia. A conquista do direito é apenas o início do processo. A gente precisa estar atento ao dia a dia, ao cotidiano, e fazer com que essa conquista seja garantida efetivamente”, alerta.
Pastora há mais de 10 anos e com uma vida ligada ao cristianismo, a pedagoga e teóloga Laianne Valadares da Silva, de 36 anos, é moradora de Palmas, capital do Tocantins, um estado cujos casamentos homoafetivos representam apenas 0,20% do total. Laianne chegou a ser casada com um homem e frequentava uma igreja, que classifica como fundamentalista. Desde o ano passado, é casada com a engenheira civil Cleicy Rafaelly Brito Gonzaga, de 27 anos.
Hoje, ela estuda teologia inclusiva, proposta de estudos bíblicos com foco na valorização das diversidades sexual, religiosa, étnica e cultural, e abriu a comunidade Lar Church, em Palmas, um local de acolhimento às pessoas LGBTQIA+ “de todas as religiões, mas principalmente as pessoas do cristianismo, que, muitas vezes, foram expulsas das igrejas e massacradas pela religiosidade”.
“O casamento fez uma mudança de perspectiva com relação ao nosso casamento. Da família, dos nossos amigos e tudo. Acho que eles começaram a olhar e falar ‘opa, a coisa é séria?’, ‘elas não estão brincando de casinha, não'”, conta.
A casais homoafetivos na dúvida sobre oficializar ou não as suas uniões, ela aconselha que, caso seja o desejo de ambos, procurem um cartório e realizem a cerimônia.
“Passamos muito tempo lutando por esse direito de poder casar, de poder regularizar as nossas uniões. A gente acaba enfrentando preconceito durante esse processo e, de fato, isso machuca. Mas não podemos abrir mão disso. Uma união, muitas vezes, não muda nada no relacionamento em si. Mas muda essa questão dos nossos direitos, a gente ganha”, finaliza.
O amor de Deus na minha vida sempre foi muito grande. Então eu sempre compreendi claramente que a minha homoafetividade, o meu cristianismo, a minha religião, não interferem em nada. Deus continua me amando exatamente como eu sou – Laianne
Deixe seu comentário