Rondoniense Jaíne Mackievicz vence reality de cozinha sobre Julia Child nos Estados Unidos

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Na segunda (18), aconteceu o improvável. No episódio final da primeira temporada do reality norte-americano de culinária “The Julia Child Challenge”, quem desbancou sete cozinheiros amadores foi uma brasileira de Rondônia: Jaíne Mackievicz, de 29 anos.

 

Produzida pela Food Network, a série de seis episódios foi um tributo ao legado de Julia Child (1912 – 2004). Mistura de Ofélia, Palmirinha e Ana Maria Braga dos Estados Unidos, a californiana levou o fogão e as panelas para dentro da TV — sua história foi contada no filme “Julie & Julia”, com Meryl Streep no papel da apresentadora.

 

Com irreverência e bom humor, ensinou, durante quarenta anos e por meio de dezenas de livros e shows, o bê-á-bá que aprendeu na prestigiada escola francesa Le Cordon Bleu para o país que só queria saber de fast-food.

 

Trata-se de um feito reconhecido por craques como o chef-viajante Anthony Bourdain (1956 – 2018):

 

“Julia Child foi a figura mais importante, influente e com poder de mudança da história da gastronomia americana. Tudo se volta para ela”.

 

A cada programa, os competidores foram recebidos por vídeos antigos da própria cozinheira e tiveram a tarefa de reproduzir e recriar pratos célebres da apresentadora. Para Jaíne, a premiação foi um encontro entre mestre e pupila:

 

De alguma maneira, Julia estava lá e eu também. É a realização do sonho de uma vida”.

 

Abaixo, a rondoniense conta como seguiu os passos da ídola até chegar no reality, que promete estrear no Brasil em 28 de junho no streaming Discovery. Confira ainda, nos quadros com frases, algumas das tiradas mais marcantes de Julia Child ao longo de sua carreira.

 

A seleção

“Detesto competições. Nunca imaginei que um dia me ligariam dizendo que tinham lido um artigo que escrevi contando a minha história com a Julia Child na revista americana Cherry Bombe e me perguntariam se eu gostaria de fazer parte do casting de um reality de culinária.

Os produtores explicaram que era um programa dedicado à memória da Julia e que ela seria uma espécie de professora dos competidores. Eu não queria participar, mas meu marido insistiu e eu pensei: ‘Se há alguém por quem eu faria isso, esse alguém é Julia.’

 

Foram várias etapas de seleção. Para mim, a chance era remota. Tanto por causa da língua — aprendi inglês só quando cheguei nos EUA, muito por meio de livros de culinária — quanto pela falta de referências: não cresci comendo mac’n cheese. Como o alvo eram cozinheiros amadores e eu nunca fiz um curso formal, acabei me enquadrando e fui selecionada.

 

Por coincidência, eu e meu marido estávamos nos mudando para a Califórnia, onde o show seria gravado. Numa passagem por Washington, visitamos o Museu Nacional da História Americana. Na ala dedicada à comida, conheci a cozinha de quando Julia morava em Cambridge, Massachusetts, e que foi doada à instituição. Quando vi o set de filmagem, foi como se eu tivesse entrado na casa dela. Era tudo idêntico.

 

A dinâmica foi estilo “MasterChef”. Foram oito concorrentes, um eliminado por episódio e três que chegaram à final. A cada semana, o programa teve um tema diferente que se relacionava com alguma fase da vida da Julia, trouxe um convidado e apresentou dois desafios: o primeiro técnico e o segundo, criativo. Ao final, todos se reuniam à mesa para comer, assim como ela fazia nos encerramentos dos programas”.

 

A vitória

“Diferentemente dos outros participantes, eu não tive a influência direta de assistir a Julia na TV. Minhas referências vieram do que eu pude absorver da história dela por vídeos e livros e da minha própria imaginação.

Me acostumei a pensar nela nos momentos que me sentia perdida no meu propósito. Quando ela se mudou para Paris, começou a cozinhar para se encontrar e enfrentou dificuldades com a língua.



 

Ao participar do show, me apeguei a essa ideia de Julia experimentando o mundo da gastronomia no país que não era o dela. Foi a mesma sensação que eu tive. Me inspirei e decidi que queria ser 100% eu. Levar a minha brasilidade, mesmo com a barreira do idioma.

 

A disponibilidade de ingredientes era enorme e me ajudou. Consegui trabalhar com goiabada, maracujá, banana-da-terra, arroz e feijão. Pude fazer a comida que sei de coração e acredito que isso fez com que eu me destacasse.

 

Em todos os episódios, eu me emocionei. Sentia que a energia da Julia estava naquela cozinha. Considerando os passos que dei na minha vida baseados nela, foi mágico fazer parte disso e ainda sair campeã”.

 

A descoberta

“Nasci em Costa Marques, cidade remota na fronteira com a Bolívia. Estudei numa escola de missionários da igreja católica que eram da França. Comecei a perceber as palavras em francês e me lembro de uma professora que dizia o nome das comidas. O interesse foi crescendo dentro de mim, também pela revista Claudia, que minha mãe assinava.

Um dia passou na TV um trecho do programa de que Julia participava. Eu devia ter uns sete anos e sofria bullying por ser alta. Ela me chamou a atenção pelo tamanho e minha relação foi imediata: ‘Quem sabe eu faça sucesso como ela. Ela é alta igual a mim’.

 

Sempre fui apaixonada por comida, mas em Costa Marques só tinha um restaurante. Meus pais não enxergavam esse mercado e não me deixaram fazer gastronomia. Acabei cursando Direito e disse para a minha mãe: ‘Vou fazer a OAB, te dar a carteirinha e ser livre para fazer o que eu quiser’.

 

O que me levou a esse pensamento foi a morte do meu pai. Ele era novo, 44 anos, e eu tinha uns 19. O meu mecanismo de superação foi fazer a minha vida valer a pena. Jurei, para mim e para ele, que não seguiria em algo que me deixava infeliz”.

 

Arquivo pessoal

 

A mudança

“No meu caminho para deixar o Direito, pesquisei mais e mais sobre a Julia. Guardei comigo aquela sensação de inspiração da criança que sofreu bullying ao ver um ícone tão genuíno.

Em 2016, decidi me mudar para uma das cidades em que ela morou. Escolhi Boston, onde fundou uma pós-graduação de gastronomia. Meu marido, que me deixa brilhar igual Paul fazia com Julia, embarcou nessa loucura também.

 

Quando chegamos, vi que o curso de culinária era muito caro. Não tinha dinheiro nem para fazer o de inglês. Então comprei livros de culinária — aqui nos EUA, a literatura é gigantesca — e sozinha fui aprendendo as técnicas e o idioma.

 

Depois de um tempo, cheguei a fazer aulas avulsas de cozinha na universidade. Isso me fez sentir que eu estava me guiando por Julia, que também viveu como imigrante em Paris, de uma maneira ou outra.

 

As coisas mudaram quando sugeri a minha história para a revista Cherry Bombe. A publicação, que é bianual, fez uma edição especial em homenagem à cozinheira. A editora ficou empolgada por eu vir da Amazônia e por ter me relacionado com a apresentadora mesmo à distância.

 

Com a visibilidade do artigo, outras coisas foram aparecendo, como o casting para o reality e um convite para conhecer a casa de verão que foi dos pais da Julia em Oceanside, San Diego, onde moro hoje. Os atuais proprietários me receberam e apresentaram o lugar, que foi todo conservado. Eu quase caí dura. Vim pra cá sem saber que ela viveu aqui também.

 

A minha admiração chega às coisas mais simples. Paul adaptou a cozinha de Julia para que ficasse funcional para a sua altura. Douglas, meu marido, colocou na minha ganchinhos parecidos para pendurar panelas. Também tenho uma foto dela em cima da geladeira e inúmeros livros. Do filme “Julie & Julia”, a minha versão favorita é uma do YouTube em que todas as cenas da Julie foram cortadas.

 

Sonhar com tudo isso me trouxe até aqui. Eu fiz e faço o que Julia aconselhou numa frase:

 

Encontre alguma coisa pela qual você seja apaixonado e se mantenha tremendamente interessado por ela”.

 

Fonte: UOL