A selva inóspita do passado deu lugar à construção a Ariquemes, cidade planejada pelo arquiteto da Universidade de Brasília (UnB) e doutor em desenvolvimento urbano pela Universidade de São Paulo (USP), Antônio Carlos Cabral Carpintero. A terceira maior cidade de Rondônia, a 200 quilômetros de Porto Velho, completa 42 anos neste 11 de outubro.
Dezenove projetos de assentamento entre 1974 e 2015 receberam 8,6 mil famílias em Ariquemes. Com grande parte dessa gente foi possível a criação de oito novos municípios. Mais 17 projetos de assentamento vieram após a elevação a município em 1977.
Com 106 mil habitantes, Ariquemes tem história que vem de muito longe. Na década de 1940, nas aldeias construídas em pequenas clareiras abertas na mata, indígenas Arikeme, plantavam roças de milho, macaxeira, batata doce, cará, algodão, e produziam farinha e cauim [bebida cozida e fermentada].
Antes do contato eles habitavam malocas retangulares com tetos de duas águas bastante altos e saídas dos dois lados. Mais tarde as malocas foram se tornando minorias, predominando casas de madeira cobertas com telhas de amianto, prática introduzida pela Funai [relato do Instituto Socioambiental – ISA].
Washington Heleno Cavalcante, diretor do Museu Rondon, lembra que em 1914 o lendário marechal Cândido Rondon resolveu criar um posto indígena que protegesse os Arikeme, à margem esquerda do Rio Jamari.
O posto homenageou o ministro Rodolpho Miranda, que o havia convidado para chefiar o antigo Serviço e Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (vinculado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio). Tinha 4,1 mil hectares e mais tarde fora ampliado para 90 mil ha.
Em 11 de outubro de 1977, a Lei nº 6.448 determinou a emancipação política de Ariquemes, atualmente com 4.427 mil quilômetros quadrados de extensão. O município foi instalado 41 dias depois, em 21 de novembro. Leis estaduais o fizeram ceder parte da sua área territorial para a criação dos municípios de Jaru, e em seguida, Cacaulândia, Monte Negro, Alto Paraíso, Rio Crespo, Cujubim, Machadinho d’Oeste, e Vale do Anari.
Antigamente, o município de Ariquemes abrangia desde a margem esquerda do Rio Jaru até a linha 105 do projeto Marechal Dutra. Nela se situa o Garimpo Bom Futuro, considerado a maior reserva mundial a céu aberto de minério de estanho (cassiterita). Nos anos 1970, as reservas eram exploradas por grupos multinacionais, hoje, todo minério é extraído e comercializado por cooperativas.
No auge de sua exploração, o Bom Futuro reuniu cerca de 5 mil pessoas, das quais, uns quinhentos requeiros, mulheres e crianças sem amparo trabalhista. Desse contingente, 30% eram analfabetos e os outros 70% não tinham concluído o 2° grau. A malária sempre atacou na região, e o número de homicídios logo no início chegou a dez por semana entre 1987 e 1989. Mais de quatrocentas mulheres se prostituíam no garimpo, o que fez aumentar o índice de doenças sexualmente transmissíveis e o consumo de drogas.
SÍFILIS, PROSTITUIÇÃO E OUTRAS COMPLICAÇÕES
“Ainda no ano de 1914 os Arikemes foram transferidos de sua área de convívio, o rio Massangana, para o Posto Indígena Rodolpho Miranda. Dos 600 indígenas localizados pela Comissão Rondon em 1909, restavam apenas 60”, escreve Washington Cavalcante.
“Após o pedido de Rondon, a abertura das aldeias Arikeme para o homem branco causou vários danos: sífilis, prostituição, aculturação, moléstias urbanas, raptos de crianças, casamento com não índios, todos responsáveis pela dizimação da etnia”, prossegue.
“Agora, o Posto Rodolpho Miranda apresentava-se como esperança de perpetuação do grupo. No dia 4 de fevereiro de 1918 o jornal Alto Madeira veicula uma matéria intitulada Promissor início de proveitosa proteção aos nossos aborígenes, apresentando os inúmeros benefícios trazidos pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio). Dentre as benfeitorias divulgadas pelo jornal em 1918 podemos claramente perceber um imaginário de catequização dos indígenas pelo SPI, uma vez que ao Posto Rodolpho Miranda contava com uma escola primária, uma ateliê de costura, uma oficina de marcenaria, um engenho de cana com capacidade para cinco toneladas por dia, atividades propriamente desempenhadas pela sociedade não indígena”, ele acrescenta.
LOTE É COTADO A TRÊS MILHÕES DE CRUZEIROS
Em 1975, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Governo do Território e Prefeitura de Porto Velho iniciaram os projetos de assentamento dirigido Marechal Dutra e Burareiro. No entanto, já em 1972, o Incra havia enviado técnicos à região do Jamari para estudar a desapropriação de terras públicas nas quais nasceram o Marechal* e o Burareiro**, o primeiro para incentivar a cultura cafeeira, o segundo para lavouras de cacau.
Cada assentado no Burareiro (5º grande projeto do Incra em Rondônia) recebia um lote de 250 hectares, enquanto o lotes do Marechal media cem hectares. Entre 1975 e 1977 entravam no território federal 3.150 famílias, a maioria desembarcando de caminhões paus-de-arara e de ônibus. De 1974 a 1996, os dois projetos assentaram 4.832 colonos, com autorizações de ocupação e títulos definitivos.
No início dos anos 1980, a cotação do hectare de terras férteis alcançava até três milhões de cruzeiros (moeda daquela época), o dobro do preço de outras áreas. Mais adiante, isso teve um preço: pequenos sítios eram transformados em grandes fazendas nas linhas 8 e 12. A maioria dos agricultores “pendurados” em dívidas de financiamentos no Banco do Brasil vendera a terra barato, sujeitando-se à negociações forçadas.
No interior do Burareiro, assentados e indígenas Uru-eu-Wau-Wau (ou Jupaú) entraram em conflito numa das margens do Rio Floresta. A Fundação Nacional do Índio (Funai) havia notificado o Incra a respeito da interdição da área, mesmo assim aquela autarquia expedira 122 títulos definitivos para agricultores. O problema prolongou-se por mais três décadas.
Convidado pela Funai, o Departamento Geográfico do Exército Brasileiro iniciava a demarcação da terra indígena, auxiliado pela subcontratação de empresa particular. Sem ter verificado exatamente os limites, a Funai designou sertanistas para localizar marcos e picadas. Em vão: invasores teriam arrancado as poucas placas colocadas.
Indevidamente, em 8 de novembro de 1980 o Incra causou confusão ao conceder 113 títulos na parte Sul do projeto, avançando sobre a terra indígena. Cinco anos depois, reconhecia que a maioria dos beneficiados não morava nos lotes, principalmente devido à falta de estradas de acesso. “O desmatamento havia apenas começado”, informava o advogado do Incra, Altamir Wolmann, ao Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário em 1985.
CACAUEIROS DOENTES
Em 1979, a vassoura de bruxa (Crinipellis perniciosa) atacava fortemente os cacaueiros de Ouro Preto do Oeste, e logo espalhava-se também por Ariquemes. O diretor da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), Nilton Camargo, constatava a contaminação da maior parte das lavouras.
Nove mil hectares de novos cacaueiros estariam plantados até o final daquele ano, tanto por “marechais” quanto por “burareiros”.
A empresa Aninga, maior compradora do produto no extinto território federal, pagava 50 cruzeiros o quilo e fecharia o ano com a aquisição de quatrocentas toneladas. Produtores enfrentavam a doença jogando sobre as plantas soluções à base de cobre. Entre eles, o baiano Carlos Guerreiro, dono de 250 hectares de lavouras, buscava salvar seus 48 mil cacaueiros em franca ascensão. Conseguira financiar 30 ha na agência do Banco do Brasil em Ariquemes, apresentando projeto da Ceplac, e queria dinheiro para mais 20 ha. Ao mesmo tempo, ele cultivava arroz, feijão e milho.
No entanto, a “menina dos olhos” de Guerreiro e outros tantos baianos estava ameaçada no momento em que a árvore produzia um fruto cotado a 800 cruzeiros a arroba (15 kg). Antes da doença prejudicar a formação de novas lavouras, cada pé de cacau rendia 15 a 25 frutos. E ainda colhiam bananas, que eram plantadas para o sombreamento dos cacaueiros.
No primeiro ano de plantio, o agrônomo da Ceplac, Frederico Afonso, levava em consideração que aqui era muito mais fácil sobreviver com a vassoura de bruxa. “Em razão da existência de uma estação de seca e outra com água, e nesta vento e água são agentes de dispersão”, lembra o jornalista Roberto Gutierrez. “Já no sul da Bahia (microrregião de Ilhéus-Itabuna), o clima é quente e úmido a maior parte do ano. “O saudoso Afonso e os melhores doutores em fitopatologia do planeta estudaram anos a fio na Estação Experimental da Ceplac”, diz Gutierrez.
A doença é originária da bacia amazônica e só foi detectada no Sul da Bahia em 1989. De 1991 para 2000 o Brasil teve sua produção anual reduzida de 320,5 mil toneladas para 191,1 mil toneladas, caindo a sua participação no mercado internacional de 14,8% para 4%.
Se isso é ruim, a baixa cotação fragiliza a situação socioeconômica e o equilíbrio ecológico das regiões produtoras do cacau no País. Estima-se que 2,5 milhões de pessoas dependem dessa atividade.
LOTES NA TERRA INDÍGENA
A população indígena passou de 250, em 1981, para 89 em 1993, particularmente entre o povo Jupaú. Segundo estudo do ISA, cerca de dois terços foram eliminados em razão de conflitos e das sucessivas doenças que assolavam as aldeias, principalmente as infecto-respiratórias. “Nos anos seguintes a 1993 houve pequena retomada no crescimento populacional, em parte pela demarcação, fiscalização e vigilância da Terra Indígena”, assinala o instituto.
“Com a definição de limites por decreto presidencial, esperava-se, então, que o Incra reassentasse os titulados em outra região, respeitando a terra indígena. Mas isso não ocorreu”, escrevia Wolmann.
Em sucessivas ajudas memoriais de missões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) em Rondônia, o Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia (Planafloro) constatou a situação do Burareiro, mas não o solucionou.
A confusão agrária resultou numa ação jurídica movida em 1994 contra o Incra, visando à anulação dos títulos na terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau. No entanto, dois anos depois, o parecer da Justiça foi desfavorável aos índios. Interpretava-se que a ação movida pela Funai não deveria ser contra o Incra, e sim, contra cada um dos 122 proprietários de títulos definitivos.
O tempo passou. Como a maioria desses títulos já havia sido vendida a terceiros, a situação causaria diversas ações judiciais contra os detentores dos títulos, inviabilizando-se a curto ou médio prazo.
Numa reunião interinstitucional promovida pelo Governo de Rondônia em 27 de abril de 1995 propuseram que a área remanescente (39 mil hectares) que seria diminuída da Terra Indígena Karipuna [Oeste do Estado] assentasse, além de 184 invasores locais, os invasores do Burareiro e os 40 da Terra Indígena Mequéns. A Funai cumpriu o proposto, porém, o Incra e Estado não retiraram os invasores. E mais invasões ocorreram.
Em 1996, a decisão judicial relativa ao Burareiro foi usada de maneira distorcida por políticos de Ariquemes e Monte Negro, para incentivo de invasão, informa o Ministério Público Federal. Funai, Polícia Federal e Ministério Público, apoiados pela Associação Indígena Jupaú e Associação Kanindé promoveram a chamada “desintrusão do lado Norte da terra indígena”, resultando na prisão de invasores, todos indiciados em processos judiciais. Litígios prosseguiram.
CLAREIRAS NA FLORESTA
O desmatamento comia solto. A machadadas, foices e logo depois com motosserras, posseiros, peões e proprietários derrubaram mogno e castanheiras, então as mais cobiçadas madeira de lei do País. Reservas nobres foram abaixo, repetindo-se o que já ocorria em Juína [noroeste de Mato Grosso] e alguns anos depois em Colniza, Brasnorte e Nova Mamoré [oeste de Rondônia].
Em 2009, o biólogo Fernando Reinach sugeriu a estudantes, universitários e a quem mais se interessasse. “Digitem Ariquemes, Brazil”, ele dizia apontando para o Google Earth. Num ponto de visão a 100 quilômetros de altitude, encontrava-se uma janela que permitia mudar a foto de satélite que cobria a região. “Vá à primeira foto disponível [18 de junho de 1975]: você verá Ariquemes cercada pela floresta intocada. Vá para a próxima imagem [sete de julho de 1989]”, ele pedia.
Constatava-se a abertura de duas estradas que se dirigem ao sul e ao norte, e delas, estradas paralelas para leste e oeste. Na beira de cada uma, centenas de áreas de desmatamento, quadrados de 500 m de lado, cada um equivale a 25 quarteirões de São Paulo.
“Quase 15% da mata foi derrubada”, constatava Fernando Reinach.
Ele apurava que o garimpo Bom Futuro estava cercado de mata 58 quilômetros a oeste de Ariquemes. Na imagem seguinte, em 18 de setembro de 2001, os quadrados desmatados se transformaram em retângulos de 500 por 1.500 m. “Mais de metade da mata provavelmente se foi, a cidade cresceu, o garimpo está cercado de uma área totalmente desmatada”, lamentava.
“Vá até a imagem de 27 de julho de 2008. Quanto da mata você estima que sobrou neste quadrado de 100 por 100 km? Você quer saber quanto é 100 por 100 km? Tente se colocar sobre São Paulo, com seu ponto de visão a 100 km de altitude. A diagonal do quadrado vai de Jundiaí a Bertioga. São 33 anos entre 1975 e 2008.”
“Com a definição de limites por decreto presidencial, esperava-se, então, que o Incra reassentasse os titulados em outra região, respeitando a terra indígena. Mas isso não ocorreu”, escrevia Wolmann.
Em sucessivas ajudas memoriais de missões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) em Rondônia, o Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia (Planafloro) constatou a situação do Projeto de Assentamento Dirigido Burareiro, mas não o solucionou.
A confusão agrária resultou numa ação jurídica movida em 1994 contra o Incra, visando à anulação dos títulos na terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau. No entanto, dois anos depois, o parecer da Justiça foi desfavorável aos índios. Interpretava-se que a ação movida pela Funai não deveria ser contra o Incra, e sim, contra cada um dos 122 proprietários de títulos definitivos.
O tempo passou. Como a maioria desses títulos já havia sido vendida a terceiros, a situação causaria diversas ações judiciais contra os detentores dos títulos, inviabilizando-se a curto ou médio prazo.
Em 27 de abril de 1995, numa reunião interinstitucional realizada pelo Governo de Rondônia, propuseram que a área remanescente [39 mil hectares] para ser diminuída da Terra Indígena Karipuna [oeste do estado] assentasse, além de 184 invasores locais, os invasores do Burareiro e os 40 da Terra Indígena Mequéns.
A Funai cumpriu o proposto, porém, o Incra e Estado não retiraram os invasores. E mais invasões ocorreram.
Em 1996, a decisão judicial relativa ao Burareiro foi usada de maneira distorcida por políticos de Ariquemes e Monte Negro, para incentivo de invasão, informa o Ministério Público Federal. Funai, Polícia Federal e Ministério Público, apoiados pela Associação Indígena Jupaú e Associação Kanindé promoveram a chamada “desintrusão do lado norte da terra indígena”, resultando na prisão de invasores, todos indiciados em processos judiciais. Mas os litígios não acabaram até hoje.
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* Marechal Eurico Gaspar Dutra foi um militar cuiabano que se tornou o 16º presidente brasileiro, pelo Partido Social Democrático, que governou de 31 de janeiro de 1946 até 31 de janeiro de 1951.
** Na Bahia, burara é a tradução do tupi ymbyrá rá, “madeira que se solta”, ou “árvore caída na estrada”.
Fonte
Texto: Montezuma Cruz
Fotos: Ésio Mendes, Frank Néry, Balanço Notícias e Jesco von Puttkamer
Secom – Governo de Rondônia
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